segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Aneurisma dos doces

Diário de Bordo, Porto, 25 de Setembro de 2008
Canção do Dia: «Peter Pan» Spleen


-O meu marido era um malandro, que Deus o tenha! Eu dava-lhe dieta em casa. Sim! Porque eu sou enfermeira, eu sei tratar bem das pessoas! Dava-lhe sempre dieta. Sopinha, peixe grelhado e batatinhas cozidas que eram uma maravilha. Óh se eram! E o malandro à tarde fugia e ia para a pastelaria encher-se de bolos e doces. Tinha amor aos doces o homem! E sabe o que aconteceu, sabe?
-Olhe, tinha ele 24, tinha eu 21. Deu um berro; caiu no chão. Deu outro berro, morreu. Foi dos doces. Aneurisma dos doces! Valha-me Deus!...

-E o meu genro. Nem sabe! Eu tratava muito bem dele. Dava-lhe dieta e peixinho. E ele comia tudo. E depois ele foi morar para Inglaterra e só comia bifes! Sempre sempre a comer bifes! Não imagina! Eles lá é só bifes e batatas fritas! Eu disse-lhe para fazer análises ao colesterol e tri-glicerídeos porque há uns tempos atrás estavam muito altos. E ele fez. E o "doctor" disse-lhe que estava tudo bem. Disse-lhe para não confiar nesse médico, q'uele não sabia nada do que fazia! E depois veio para cá, eu perguntei-lhe como estava e olhe, morreu!...


-Eu também tenho de ter cuidado, não me posso constipar. Disse-me o médico do coração! (A dita senhora encontrava-se exageradamente vestida: lenço na cabeça, casaco de pele, cachecol, luvas e botas!)



Aparecem os fiscais.
-Lá vem a polícia!

Confirmam 2 andantes e páram num senhor de meia idade.
-Ai os polícias, paráram ali no senhor! Se ele tem cartão, não devia pagar multa? De quanto é a multa amigo? Questionando o homem à sua frente.
-Sessenta ou setenta euros, penso eu.
-Sessenta! Só! Ai havia de ser mais! Mas para quem as merecesse, para os ladrões, não para as pessoas honestas! Coitado do senhor!
-Pois é, pois é...-responde-lhe.
-Isto não tem jeito nenhum. E as carruagens?! Já vieram com defeito. Não têm bar, não têm quarto de banho. É uma estupidez, já viu? E devia ter quartos de benho para crianças, doentes e idosos! Já viu o que é ir até à "Póvoa" a aguentar a bexiga. Ainda no outro dia havia uma miudinha que estava aflita e não podia fazer xixi! Então eu dise-lhe para ela fazer ali, mesma à frente da porta do condutor, à minha responsabilidade. E ela fez.
-Fez?!
-Fez. Coitada da miúda, não ia ficar apertadita. E eu sou enfermeira disse-lhe que fazia mal ficar com a bexiga apertada, valha-nos Deus!
-Hum...
-No outro dia também houve uma senhora que lhe deu vontade e eu disse para ela fazer ali (apontando novamente para a área da porta do condutor). E eu disse: «Faça. Faça à minha responsabilidade e limpe-se à saia como se faz na minha terra, assim-exemplificando«.


Entretanto um dos meus desconhecidos colegas de viagem fecha o livro.
-Isto hoje está impossível p'ra ler. Emprestas-me a "Visão"?

Andante

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Livros de Bolso

Diário de Bordo, Vila do Conde, 15 de Setembro de 2008
Canções do Dia: Album: «Children's Songs» Chick Corea


Depois de estar vários meses sem actualizações, o novo ano lectivo começa para iniciar novamente a vida sobre carris.



Adoro ler livros amarrotados, livros com cantos dobrados, livros com anotações. Livros já lidos, livros já pensados. Porque cada vinco, cada dobra, cada palavra escrita amplia a curiosidade do porquê, de tal chamada de atenção.


«...Nunca desistirei de procurar, tal é a minha decisão. Também tu, pelo que me parece, andaste à procura. Quererás dizer-me uma palavra, ó Venerado?
Siddhartha disse:
-O que poderia ter eu para te dizer, ó Venerável? Talvez dizer-te que procuras demasiado? Que enquanto procurares nunca conseguirás encontrar?
-Como assim?-perguntou Govinda.
-Quando alguém procura-respondeu Siddhartha- pode acontecer que os olhos vejam apenas a coisa que ele procura, que não permitam que ele a encontre porque ele pensa sempre e apenas naquilo que procura, porque ele tem um objectivo, porque está possuído por esse objectivo. Procurar significa ter um objectivo. Mas encontrar significa ser livre, manter-se aberto, não ter objectivos. Tu, Venerável, és talvez um homem à procura, pois, perseguindo o teu objectivo, muitas vezes não vês aquilo que está perante os teus olhos.
-Ainda não te compreendo perfeitamente-disse Govinda-,o que queres dizer com isso?...»

(em «Siddhartha» de Hermann Hesse)


Andante