quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Tertúlia

Diário de Bordo, Porto-Vila do Conde, 24 de Janeiro de 2008
Canção do Dia: «The Organ Donor» Dj Shadow


Enquanto lia um dos muitos jornais gratuitos distribuidos no metro...

...
-Olhe, deixei de fumar. Estava a ser discriminado. As pessoas, com a nova lei do tabaco agora desprezam os fumadores. Parece que agora quem fuma é assassino. As pessoas olham-nos com desprezo.
-Veja o lado positivo da coisa, pelo menos deixou de fumar!
-Lá isso foi. Mas sinto falta do cigarrito com a bica. Ainda no outro dia tava distraído e acendi o cigarro dentro de um cafézito. Lá me veio uma senhora toda empiriquitada dizer-me que o estabelecimento era para não fumadores. Lá lhe pedi desculpa e apaguei o cigarro.

Entretanto, entram vários "picas " na carruagem. Páram numa senhora e saem juntos em Esposade. A troca de ideias inicía-se. Pouso o jornal e pego no bloco com a sensação de uma boa história a caminho.
-São a ASAE.
-Pois é meu amigo! Olhe, agora é sempre isto! Durante o natal não se via ninguém.
-Agora é como os passarinhos!
-Tem razão.
-Olhe, a pobre da rapariga já vai ter multa! Coitada!...
-Pagava-se a diferença e pronto!
-Pois...agora vai ter de pagar uma pesada multa!
-A passagem da senhora é que estava errada!
-Pois eu paguei 60€ sem ter culpa nenhuma!
-Olhe, é como a minha filha! No outro dia tinha tudo direitinho. E validou o andante e tudo, só que pelos vistos a máquina dizia que ela não tinha validado, e pegou no recibo errado. Não podia provar. Foram logo 65€!
-São trabalhadores da noite!
-Ah pois é!
-O melhor é evitar, tirar tudo direitinho. Olhe que vergonha!
-Também já me aconteceu, mas foi de camioneta até Crestins. A porcaria da camioneta demorou duas horas e queriam que eu tirá-se outra viagem. Não paguei. Não tinha culpa que a camioneta tivesse demorado tanto tempo. Num domingo, num verão. Foi no dia de Nossa Senhora da...

Retomou-se o tema de conversa
-Deixe estar minha senhora, eles vão pagar as viagem de borla! Eles andam atentos! Referindo-se a passageiros ilegais (os que não compram passsagem).
-Olhe o filho da minha vizinha apanhou uma multa de 70€ por causa disso.
-Já viu quantas viajens dá para fazer?!
-Brincava no metro. Fazia o que queria do transporte público. 75€! Teve de chamar o irmão mais velho, era menor. Foi nas férias de verão. Eram onze da noite. Saíram logo os dois.
-É um exemplo.
-O que não era justo era quando eu estava na tropa, antes do 25 de Abril e não pagavam nada. Tinha de pagar bilhete para vir visitar a família. Nós a defendermos o país e não nos calhava nada. Isso é que era injusto! Trabalháva-se para voltar para casa.
- Com os meus irmãos também era assim. E não fumavam!
-Com o governo que está aí vamos voltar a isso.
-Pagava-se para tudo. Pagava-se para fumar, as bicicletas tinham de ter matrícula, não se podia andar descalço na rua.
-A minha irmã uma vez foi multada por não andar com as socas em Vila do Conde. Tinha 14 anos!
-Olhe, é isso e o tabaco.
-Não me faz falta nenhuma!
-Os cafés perderam muito com isso!
-As cidades estão fechadas à noite. Desaparece tudo!
-Desde que apareceram as discotecas e os supermercados...

A conversa continua, abordam-se vários temas: acidentes, pedofilia, assassínios, crianças desaparecidas. Comentam-se as últimas novidades dos jornais. Invoca-se Salazar.
A tertúlia vai-se desfazendo. Os intervenientes começam a abandonar a conversa.
-Boa tarde!
O senhor de óculos assobia agitando um envelope.

"Santa Clara"

Fecho o bloco, está na hora de sair.

Andante

1 comentário:

Unknown disse...

Ora cá está um texto que é a imagem real deste país. Bem apanhado. Estas conversas são aquelas que nunca se deviam perder, pois são um retrato autêntico do nosso povo e do nosso país e dão-nos momentos dignos de serem registados.
Parabéns!